E o ator virou bicho
Ou como Henrique Schafer se transformou em porco e alcançou o sucesso após ensaiar um monólogo durante quatro anos com disciplina marcial
Quando o professor pisou na classe, os alunos o ignoraram — não por desrespeito ou indiferença, mas porque aquele homenzinho de óculos, magro e já grisalho, chegou em absoluto silêncio. Chegou como quem sai à francesa. E ninguém, nem o mais caxias da turma, o notou, mesmo que o silêncio soasse tão eloqüente na sala agitadíssima. De pé, os estudantes distraíam-se com o próprio desassossego: tagarelavam, remexiam-se elétricos, brincavam entre si. Tinham motivo para o entusiasmo. Calouros, estavam iniciando o curso de artes cênicas na Universidade de São Paulo e aguardavam a aula inaugural, de improvisação.
O professor, ainda invisível, acomodou-se em um canto e conservou os olhos baixos por intermináveis minutos. De repente, um aluno o percebeu. Depois outro, e outro, e outro. O burburinho afinal se dissipou e todos se sentaram no chão, compondo uma roda. Sem abrir a boca (a mudez, àquela altura, se mostrava perturbadora), o professor pegou um pedaço de giz. Caminhou até o quadro-negro e escreveu: “O primeiro instante...”.
Era março de 1999. À época, Antonio Januzelli — um professor tarimbado, então com 31 anos de magistério e 58 de idade — nem sequer imaginava que o episódio iria marcar para sempre um dos jovens presentes à aula. “Jamais vou esquecer: o homem magro transformando a fragilidade em força; o silêncio tranqüilo e irredutível se impondo à sala; a frase simples e reveladora na lousa...”, conta Henrique Schafer. “Senti que havia descoberto um mestre.”
Logo de cara, Henrique se distinguia da turma. Estava com quase 32 anos enquanto a maioria dos colegas mal abandonara a adolescência. Casado, pai de uma menina, decidira enfrentar de novo o desafio de um curso superior. Muito tempo antes, estudara ciências sociais, sem conseguir tirar o diploma. “A vantagem de entrar na faculdade depois dos 30 é que você já perdeu a arrogância juvenil”, avalia. “Você se encontra meio fragilizado por se julgar um peixe fora d’água, que vai viver algo tardiamente. Em conseqüência, fica mais generoso. Releva os defeitos dos professores e se concentra nas qualidades.”
Daquele inusitado “primeiro instante”, nasceu uma sólida e fecunda parceria, que nunca pretendeu ser outra coisa senão a comunhão do discípulo com o mestre e que gerou pelo menos um fruto admirável: o monólogo O Porco. A peça — uma fábula inspirada no romance Strategie pour Deux Jambons, do francês Raymond Cousse (1942-1991) — desnuda as reflexões, ora conformistas, ora raivosas, de um suíno à espera do abate. Henrique interpreta o atormentado animal, e Januzelli (ou Janô, como os alunos gostam de chamá-lo) o dirige.
O espetáculo de 50 minutos, que estreou timidamente no dia 12 de novembro de 2004, conquistou público aos poucos até se converter em fenômeno do underground paulistano. Neste mês, deixa São Paulo e circula pelo interior do Estado. Em setembro, retorna à capital.
O desempenho de Henrique não apenas lhe rendeu elogios unânimes da crítica (“soberbo”, “irretocável”, “perfeito”, “impressionante”) como uma indicação para o Prêmio Shell 2005 de melhor ator. O discreto Janô atraiu adjetivos igualmente luminosos: “ótimo”, “sofisticado”, “um diretor de mão firme”.
Mais do que afeição mútua, o que os une é uma obsessão. Os dois defendem que, para exercer integralmente a arte dramática, o ator precisa se livrar de uma série de “cascas” — crença, aliás, nada incomum no universo teatral. Tais “cascas” (as certezas, os preconceitos, as convenções estéticas, as soluções fáceis, a ansiedade e, acima de tudo, a vaidade) só desapareceriam por meio do agir, e não do pensar. A “limpeza” independeria de racionalismos. Ou, como Janô costuma explicar, “a dramaturgia deriva da ação, não da teorização”.
Ambos almejam, portanto, atingir o “cerne”, a essência do ator, que se esconderia sob as máscaras sociais e os condicionamentos psicológicos. Eis a obsessão que os irmana e que, em vez de escravizá-los ou reduzi-los, os fortalece.
Entende-se, agora, por que O Porco ganhou os palcos somente após quatro anos de ensaios. Quatro exaustivos e improváveis anos, que exigiram da dupla disciplina e método parecidos com os dos campeões de artes marciais ou adeptos do zen, um dos ramos do budismo.
BÓIAS-FRIAS
Foi em Campinas (SP), onde nasceu, que Henrique se encantou por coxias e camarins. De origem humilde, trabalhava como office-boy no Banco do Brasil. Um emprego promissor, garantia-lhe o pai, almoxarife. O menino, porém, já suspeitava de que iria tomar outros rumos. Tinha 15 anos quando montou a primeira peça no colégio público em que estudava. Dividia a cena com o professor de inglês. Tempos depois, ingressou numa trupe da cidade (o Téspis) e num curso técnico de interpretação. Assim que completou 18 anos, saiu do banco. Para se manter, resolveu lecionar teatro na sede do Téspis. “Desdobrava-me entre as aulas e o ofício de ator. Uma correria... Viajava à beça, principalmente com espetáculos infantis. Como me apresentava em qualquer lugar — praças, escolas, escadarias, cinemas —, a platéia variava bastante: numa tarde, garotos de classe média; na tarde seguinte, uma porção de pequenos bóias-frias.”
Em 1993, trocou Campinas por São Paulo. Continuou ensinando (no clube A Hebraica, que o emprega ainda hoje), mas parou de atuar. “Abracei a pedagogia sem traumas, com uma satisfação enorme. Na verdade, nunca associei a carreira artística à fama: ‘quero os holofotes, a Globo, Hollywood!’ De jeito nenhum... O que procuro no teatro é a possibilidade de me recriar, de percorrer caminhos distintos daqueles que minha família trilhou e de mudar um pouco o mundo, por que não? Lecionando, consigo atender perfeitamente essas demandas.”
À beira dos 30 anos, Henrique se tocou de que lhe faltavam ferramentas teóricas para crescer como professor. Quase tudo o que sabia aprendera “na raça”. “Pronto: entrei em crise.” E a crise acabou por colocá-lo na USP, diante de Janô.
REGINA DUARTE
Curiosas coincidências já aproximavam o discípulo do mestre. “Tão logo me mudei para a capital, comprei um apartamento acanhadinho em Perdizes”, lembra-se Henrique. “Quem morou no mesmo prédio, muitos anos antes? Janô!” E onde Janô — natural de Águas da Prata, estância turística do interior paulista — se iniciou nos palcos? Em Campinas. “Faz uma eternidade, meu Deus! Cinco décadas, se não me engano. Fui ator no lendário Teatro do Estudante, junto com Regina Duarte, imagine...” De lá seguiu em 1967 para o também histórico Teatro da Universidade Católica, o Tuca de São Paulo, e encenou O&A. “A peça, do romancista e terapeuta Roberto Freire, dispensava os diálogos. Baseava-se somente no gestual e em alguns sons.”
Um ano depois, Janô virou professor por razões idênticas às de Henrique (“necessitava de dinheiro”) e nunca mais se afastou do magistério. “Dar aulas é o que me move e apaixona.” Paralelamente, desenvolveu uma extensa pesquisa sobre a arte de atuar que resultou em 85 cadernos de anotações, uma tese de doutorado, um livro (A Aprendizagem do Ator) e um método de interpretação.
O “método Janô”? “Bobagem... Não creio que inventei nada”, apressa-se em dizer. “Tentei apenas aliar o fruto de minha experiência letiva às idéias de uns tantos, e geniais, autores.” A lista inclui nomes clássicos da teoria dramatúrgica (o russo Constantin Stanislavski, o polonês Jerzy Grotowski, o francês Antonin Artaud e o norte-americado Joseph Chaikin), mas também o filósofo alemão Eugen Herrigel, que escreveu A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen.
Original ou não, o fato é que o método sistematizado por Janô enxerga no ator a alma, a chave do teatro. E busca aguçar-lhe a intuição para justamente torná-lo menos cerebral e, assim, despi-lo de todas as “cascas”.
KUNG FU
“Ator.” A palavra tirou o chão de Henrique quando Janô a pronunciou em outubro de 2000. “Seja sincero, rapaz, você tem vontade de trabalhar novamente como ator?” Henrique não considerava a hipótese há séculos. “Tem?” Respondeu que sim, sem saber direito por quê. “Ótimo! Gostaria de lhe mostrar uma coisa.”
Passaram-se uns dias, e Janô surgiu com O Porco. Ou melhor, com El Cerdo, a adaptação do romance de Cousse que o dramaturgo espanhol Antonio Andres Lapeña assinava. O monólogo fez sucesso na Europa, interpretado pelo madrilenho Juan Echanove. A atriz brasileira Eliana Teruel assistiu à montagem e deu a dica do texto para Janô. Ela própria se encarregou da tradução.
“Veja que engraçado... Depois de responder ‘sim’, decidi me colocar inteiramente à disposição de Janô”, revela Henrique. “Agi mais ou menos como os jovens pupilos nos filmes de kung fu: identifiquei o mestre e lhe entreguei a minha confiança. Admirava Janô em sala de aula e queria descobrir de que maneira aquele sujeito preparava um ator. Então, baixei a cabeça e me submeti, sem indagações. Não perguntei o que ele pretendia: se iríamos encenar a peça ou quantos meses gastaríamos com ensaios. Apenas deixei rolar.” “Realmente”, atesta Janô. “Desde o princípio, vislumbrei em Henrique uma maturidade, um grau de concentração e um interesse raríssimos. Foi sorte conhecê-lo.”
A dupla combinou se encontrar uma vez por semana, durante duas ou três horas, para ler o texto. “Ler, ler e ler, só que de um jeito bem inusitado”, recorda Henrique. “Eu precisava frear o fluxo do pensamento à medida que lia.” Missão que, de início, lhe soou impossível. Mas Janô dispunha de técnicas. Uma infinidade delas... Por exemplo: Henrique fazia a leitura de cócoras. Ou andando em círculos. Ou correndo. Ou em voz alta, como se discursasse. Ou dentro de um cubículo, cochichando no ouvido de Janô. Ou muito lentamente. Ou muito rapidamente, sem respeitar as pontuações.
Às vezes, o mestre solicitava que o discípulo “dissesse” o texto em silêncio, valendo-se de gestos e nada mais. Ou que o repassasse enquanto cumpria tarefas cotidianas: dobrar roupas, varrer a casa, servir um café. “Também me pedia que falasse cada frase com o corpo todo retorcido. Ou que me beliscasse ao longo dos treinos.” Certa tarde, Henrique visitou um chiqueiro. Tinha de sentir o odor dos porcos, observá-los, tocá-los. “Com o tempo, notei que tudo isso desorganizava a minha ordem racional e me permitia ativar outros mecanismos de percepção.” De tal modo que o ator acabou decorando o monólogo “organicamente”. Pulou, então, para a última etapa do processo: a concepção cênica do espetáculo.
Em maio de 2003, Janô e Henrique promoveram os primeiros ensaios públicos na USP. Ainda insatisfeitos, continuaram a burilar a peça. Só estrearam 18 meses depois no porão de um pequeno teatro paulistano, o Espaço Viga. “Era um porão mesmo”, ressalta o ator. “O pessoal do Viga o utilizava como depósito.” Ali cabiam cerca de 20 pessoas. “Mas com freqüência apareciam duas e olhe lá.”
Desde aquela época, a montagem se caracteriza pela simplicidade franciscana. O cenário compõe-se de apenas um balde. O figurino, de uma bermuda e um paletó puídos. Descalço, o protagonista atua sem maquiagem. Uma lâmpada comum e um único refletor iluminam o palco.
Nada na interpretação de Henrique remete à figura de um suíno — exceto, talvez, um leve torcer de nariz ou as mãos quase sempre fechadas. Não há caretas, não há grunhidos. A platéia, no entanto, vê um porco em cena. E também um ser miserável (o homem?) preso à própria condição.“Se retomei a carreira de ator? Sinceramente, não sei...”, diz Henrique. “Não sei o quanto me agradaria participar de projetos mais comerciais. Por ora, me importa seguir trabalhando com Janô. Sinto que ainda não compreendi nem metade do que ele procurou me ensinar. Quando penso na estrada imensa que temos pela frente, me encho de alegria e curiosidade. Para mim, é o bastante.”
(revista Bravo!)
Quando o professor pisou na classe, os alunos o ignoraram — não por desrespeito ou indiferença, mas porque aquele homenzinho de óculos, magro e já grisalho, chegou em absoluto silêncio. Chegou como quem sai à francesa. E ninguém, nem o mais caxias da turma, o notou, mesmo que o silêncio soasse tão eloqüente na sala agitadíssima. De pé, os estudantes distraíam-se com o próprio desassossego: tagarelavam, remexiam-se elétricos, brincavam entre si. Tinham motivo para o entusiasmo. Calouros, estavam iniciando o curso de artes cênicas na Universidade de São Paulo e aguardavam a aula inaugural, de improvisação.
O professor, ainda invisível, acomodou-se em um canto e conservou os olhos baixos por intermináveis minutos. De repente, um aluno o percebeu. Depois outro, e outro, e outro. O burburinho afinal se dissipou e todos se sentaram no chão, compondo uma roda. Sem abrir a boca (a mudez, àquela altura, se mostrava perturbadora), o professor pegou um pedaço de giz. Caminhou até o quadro-negro e escreveu: “O primeiro instante...”.
Era março de 1999. À época, Antonio Januzelli — um professor tarimbado, então com 31 anos de magistério e 58 de idade — nem sequer imaginava que o episódio iria marcar para sempre um dos jovens presentes à aula. “Jamais vou esquecer: o homem magro transformando a fragilidade em força; o silêncio tranqüilo e irredutível se impondo à sala; a frase simples e reveladora na lousa...”, conta Henrique Schafer. “Senti que havia descoberto um mestre.”
Logo de cara, Henrique se distinguia da turma. Estava com quase 32 anos enquanto a maioria dos colegas mal abandonara a adolescência. Casado, pai de uma menina, decidira enfrentar de novo o desafio de um curso superior. Muito tempo antes, estudara ciências sociais, sem conseguir tirar o diploma. “A vantagem de entrar na faculdade depois dos 30 é que você já perdeu a arrogância juvenil”, avalia. “Você se encontra meio fragilizado por se julgar um peixe fora d’água, que vai viver algo tardiamente. Em conseqüência, fica mais generoso. Releva os defeitos dos professores e se concentra nas qualidades.”
Daquele inusitado “primeiro instante”, nasceu uma sólida e fecunda parceria, que nunca pretendeu ser outra coisa senão a comunhão do discípulo com o mestre e que gerou pelo menos um fruto admirável: o monólogo O Porco. A peça — uma fábula inspirada no romance Strategie pour Deux Jambons, do francês Raymond Cousse (1942-1991) — desnuda as reflexões, ora conformistas, ora raivosas, de um suíno à espera do abate. Henrique interpreta o atormentado animal, e Januzelli (ou Janô, como os alunos gostam de chamá-lo) o dirige.
O espetáculo de 50 minutos, que estreou timidamente no dia 12 de novembro de 2004, conquistou público aos poucos até se converter em fenômeno do underground paulistano. Neste mês, deixa São Paulo e circula pelo interior do Estado. Em setembro, retorna à capital.
O desempenho de Henrique não apenas lhe rendeu elogios unânimes da crítica (“soberbo”, “irretocável”, “perfeito”, “impressionante”) como uma indicação para o Prêmio Shell 2005 de melhor ator. O discreto Janô atraiu adjetivos igualmente luminosos: “ótimo”, “sofisticado”, “um diretor de mão firme”.
Mais do que afeição mútua, o que os une é uma obsessão. Os dois defendem que, para exercer integralmente a arte dramática, o ator precisa se livrar de uma série de “cascas” — crença, aliás, nada incomum no universo teatral. Tais “cascas” (as certezas, os preconceitos, as convenções estéticas, as soluções fáceis, a ansiedade e, acima de tudo, a vaidade) só desapareceriam por meio do agir, e não do pensar. A “limpeza” independeria de racionalismos. Ou, como Janô costuma explicar, “a dramaturgia deriva da ação, não da teorização”.
Ambos almejam, portanto, atingir o “cerne”, a essência do ator, que se esconderia sob as máscaras sociais e os condicionamentos psicológicos. Eis a obsessão que os irmana e que, em vez de escravizá-los ou reduzi-los, os fortalece.
Entende-se, agora, por que O Porco ganhou os palcos somente após quatro anos de ensaios. Quatro exaustivos e improváveis anos, que exigiram da dupla disciplina e método parecidos com os dos campeões de artes marciais ou adeptos do zen, um dos ramos do budismo.
BÓIAS-FRIAS
Foi em Campinas (SP), onde nasceu, que Henrique se encantou por coxias e camarins. De origem humilde, trabalhava como office-boy no Banco do Brasil. Um emprego promissor, garantia-lhe o pai, almoxarife. O menino, porém, já suspeitava de que iria tomar outros rumos. Tinha 15 anos quando montou a primeira peça no colégio público em que estudava. Dividia a cena com o professor de inglês. Tempos depois, ingressou numa trupe da cidade (o Téspis) e num curso técnico de interpretação. Assim que completou 18 anos, saiu do banco. Para se manter, resolveu lecionar teatro na sede do Téspis. “Desdobrava-me entre as aulas e o ofício de ator. Uma correria... Viajava à beça, principalmente com espetáculos infantis. Como me apresentava em qualquer lugar — praças, escolas, escadarias, cinemas —, a platéia variava bastante: numa tarde, garotos de classe média; na tarde seguinte, uma porção de pequenos bóias-frias.”
Em 1993, trocou Campinas por São Paulo. Continuou ensinando (no clube A Hebraica, que o emprega ainda hoje), mas parou de atuar. “Abracei a pedagogia sem traumas, com uma satisfação enorme. Na verdade, nunca associei a carreira artística à fama: ‘quero os holofotes, a Globo, Hollywood!’ De jeito nenhum... O que procuro no teatro é a possibilidade de me recriar, de percorrer caminhos distintos daqueles que minha família trilhou e de mudar um pouco o mundo, por que não? Lecionando, consigo atender perfeitamente essas demandas.”
À beira dos 30 anos, Henrique se tocou de que lhe faltavam ferramentas teóricas para crescer como professor. Quase tudo o que sabia aprendera “na raça”. “Pronto: entrei em crise.” E a crise acabou por colocá-lo na USP, diante de Janô.
REGINA DUARTE
Curiosas coincidências já aproximavam o discípulo do mestre. “Tão logo me mudei para a capital, comprei um apartamento acanhadinho em Perdizes”, lembra-se Henrique. “Quem morou no mesmo prédio, muitos anos antes? Janô!” E onde Janô — natural de Águas da Prata, estância turística do interior paulista — se iniciou nos palcos? Em Campinas. “Faz uma eternidade, meu Deus! Cinco décadas, se não me engano. Fui ator no lendário Teatro do Estudante, junto com Regina Duarte, imagine...” De lá seguiu em 1967 para o também histórico Teatro da Universidade Católica, o Tuca de São Paulo, e encenou O&A. “A peça, do romancista e terapeuta Roberto Freire, dispensava os diálogos. Baseava-se somente no gestual e em alguns sons.”
Um ano depois, Janô virou professor por razões idênticas às de Henrique (“necessitava de dinheiro”) e nunca mais se afastou do magistério. “Dar aulas é o que me move e apaixona.” Paralelamente, desenvolveu uma extensa pesquisa sobre a arte de atuar que resultou em 85 cadernos de anotações, uma tese de doutorado, um livro (A Aprendizagem do Ator) e um método de interpretação.
O “método Janô”? “Bobagem... Não creio que inventei nada”, apressa-se em dizer. “Tentei apenas aliar o fruto de minha experiência letiva às idéias de uns tantos, e geniais, autores.” A lista inclui nomes clássicos da teoria dramatúrgica (o russo Constantin Stanislavski, o polonês Jerzy Grotowski, o francês Antonin Artaud e o norte-americado Joseph Chaikin), mas também o filósofo alemão Eugen Herrigel, que escreveu A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen.
Original ou não, o fato é que o método sistematizado por Janô enxerga no ator a alma, a chave do teatro. E busca aguçar-lhe a intuição para justamente torná-lo menos cerebral e, assim, despi-lo de todas as “cascas”.
KUNG FU
“Ator.” A palavra tirou o chão de Henrique quando Janô a pronunciou em outubro de 2000. “Seja sincero, rapaz, você tem vontade de trabalhar novamente como ator?” Henrique não considerava a hipótese há séculos. “Tem?” Respondeu que sim, sem saber direito por quê. “Ótimo! Gostaria de lhe mostrar uma coisa.”
Passaram-se uns dias, e Janô surgiu com O Porco. Ou melhor, com El Cerdo, a adaptação do romance de Cousse que o dramaturgo espanhol Antonio Andres Lapeña assinava. O monólogo fez sucesso na Europa, interpretado pelo madrilenho Juan Echanove. A atriz brasileira Eliana Teruel assistiu à montagem e deu a dica do texto para Janô. Ela própria se encarregou da tradução.
“Veja que engraçado... Depois de responder ‘sim’, decidi me colocar inteiramente à disposição de Janô”, revela Henrique. “Agi mais ou menos como os jovens pupilos nos filmes de kung fu: identifiquei o mestre e lhe entreguei a minha confiança. Admirava Janô em sala de aula e queria descobrir de que maneira aquele sujeito preparava um ator. Então, baixei a cabeça e me submeti, sem indagações. Não perguntei o que ele pretendia: se iríamos encenar a peça ou quantos meses gastaríamos com ensaios. Apenas deixei rolar.” “Realmente”, atesta Janô. “Desde o princípio, vislumbrei em Henrique uma maturidade, um grau de concentração e um interesse raríssimos. Foi sorte conhecê-lo.”
A dupla combinou se encontrar uma vez por semana, durante duas ou três horas, para ler o texto. “Ler, ler e ler, só que de um jeito bem inusitado”, recorda Henrique. “Eu precisava frear o fluxo do pensamento à medida que lia.” Missão que, de início, lhe soou impossível. Mas Janô dispunha de técnicas. Uma infinidade delas... Por exemplo: Henrique fazia a leitura de cócoras. Ou andando em círculos. Ou correndo. Ou em voz alta, como se discursasse. Ou dentro de um cubículo, cochichando no ouvido de Janô. Ou muito lentamente. Ou muito rapidamente, sem respeitar as pontuações.
Às vezes, o mestre solicitava que o discípulo “dissesse” o texto em silêncio, valendo-se de gestos e nada mais. Ou que o repassasse enquanto cumpria tarefas cotidianas: dobrar roupas, varrer a casa, servir um café. “Também me pedia que falasse cada frase com o corpo todo retorcido. Ou que me beliscasse ao longo dos treinos.” Certa tarde, Henrique visitou um chiqueiro. Tinha de sentir o odor dos porcos, observá-los, tocá-los. “Com o tempo, notei que tudo isso desorganizava a minha ordem racional e me permitia ativar outros mecanismos de percepção.” De tal modo que o ator acabou decorando o monólogo “organicamente”. Pulou, então, para a última etapa do processo: a concepção cênica do espetáculo.
Em maio de 2003, Janô e Henrique promoveram os primeiros ensaios públicos na USP. Ainda insatisfeitos, continuaram a burilar a peça. Só estrearam 18 meses depois no porão de um pequeno teatro paulistano, o Espaço Viga. “Era um porão mesmo”, ressalta o ator. “O pessoal do Viga o utilizava como depósito.” Ali cabiam cerca de 20 pessoas. “Mas com freqüência apareciam duas e olhe lá.”
Desde aquela época, a montagem se caracteriza pela simplicidade franciscana. O cenário compõe-se de apenas um balde. O figurino, de uma bermuda e um paletó puídos. Descalço, o protagonista atua sem maquiagem. Uma lâmpada comum e um único refletor iluminam o palco.
Nada na interpretação de Henrique remete à figura de um suíno — exceto, talvez, um leve torcer de nariz ou as mãos quase sempre fechadas. Não há caretas, não há grunhidos. A platéia, no entanto, vê um porco em cena. E também um ser miserável (o homem?) preso à própria condição.“Se retomei a carreira de ator? Sinceramente, não sei...”, diz Henrique. “Não sei o quanto me agradaria participar de projetos mais comerciais. Por ora, me importa seguir trabalhando com Janô. Sinto que ainda não compreendi nem metade do que ele procurou me ensinar. Quando penso na estrada imensa que temos pela frente, me encho de alegria e curiosidade. Para mim, é o bastante.”
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